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Sejam bem-vindos ao Pergaminho filosófico, um espaço dedicado à filosofia, poesia, e áreas afins. Sou Júnior Fernandes, autor deste blog; também prof. de filosofia, autor dos livros “O Sofrimento dos Filósofos”; “Trevas, trovões e trovas: escritos de uma noite escura”; “Relicário do Sagrado: tesouros da Bíblia em meditações poéticas” e “Sobre as sombras da noite”. Fique à vontade, comente, curta, critique mas construa. Que no Pergaminho possa encontrar algum rabisco que te leve à reflexão de uma melhor existência.

Das desgraças da vida à resiliência: três lições em Diógenes, Zenão e Sócrates

por Júnior Fernandes

“Depois que eu morrer, prefiro que as pessoas se perguntem por que eu não tenho um monumento e não por que o tenho”  – Catão, o velho (234-149 a.C.)

Parecerá, à primeira vista, estranho o título que encabeça esse fragmento. É possível que alguns atiçados e movidos pela curiosidade de saber do que se trata, ousem prosseguir em lê-lo. O subtítulo, porém, de antemão, antecipa ou deixa pistas do que nos propomos a tratar. Resiliência é o termo usado para evidenciar situações em que o ser humano tomado pelas adversidades é capaz de sair de todas elas triunfantemente. Coloquialmente, chamamos isso de “dar a volta por cima” ou de encarar os reveses dando risadas do mau tempo. Concernente a isso, muitas são as lições que os filósofos nos aponta.

Sem dúvida, a História da Filosofia contribuiu em muito com exemplos magnânimos de soerguimento enfrentados pelos filósofos. Mencionaremos, doravante, alguns desses casos emblemáticos.

Diógenes, o zombador social

Diógenes de Sinope, o cínico (c.400 – c.325 a.C.), viveu uma vida de total desdém às convenções sociais de seu tempo. Algumas peculiaridades de sua vida são descritas por seu homônimo Diógenes Laércio em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Este nos conta de Diógenes que seu traje era uma túnica, um alforje e um bastão. Era extremamente pobre e dependente das esmolas e benemerência de seus compatriotas. “Em certa ocasião – diz-nos Laércio – Diógenes escreveu a alguém pedindo-lhe para arranjar uma pequena casa; em face da demora dessa pessoa ele passou a morar num tonel existente no Metrôon, de acordo com suas próprias afirmações em suas cartas.”[1] Conta, ainda, Teôfrastos no seu Megárico que “certa vez Diógenes, vendo um rato correr de um lado para o outro, sem destino, sem procurar um lugar para dormir, sem medo das trevas e não querendo nada do que se considera desejável, descobriu um remédio para suas dificuldades.”[2]

Sem dúvida, Diógenes era um homem de se admirar por suas tiradas e estilo de vida. Não obstante, o povo de Atenas o amava. “Tanto era assim que quando um rapaz lhe quebrou o tonel os atenienses surraram o rapaz e deram outro tonel a Diógenes.”[3] Com efeito, o próprio filósofo “dizia que todas as maldições da tragédia haviam caído sobre ele e de qualquer modo era um homem ‘sem cidade, sem lar, banido da pátria, mendigo, errante, na busca diuturna de um pedaço de pão.”[4]

Ademais, Laércio diz que o cínico Diógenes “no verão rolava sobre a areia quente, enquanto no inverno abraçava as estátuas cobertas de neve querendo por todos os meios acostumar-se às dificuldades.”[5] Em meio a um estilo de vida que parecerá ao homem moderno uma desgraça, foi Diógenes um homem livre e admirado no seu tempo.

Em suma, viveu uma vida de disciplina e aversão aos prazeres mundanos. Em seu tempo foi um zombador social; viveu isolado e resignadamente sem casa e dinheiro, portanto pobre e sem teto. Seus bens mais valiosos eram o tonel onde morava, um alforje e sua lanterna, usada para “procurar um homem justo no mundo”. Sabe-se que quando Alexandre, o grande, ao se encontrar[6] com Diógenes na ocasião de seu banho de sol, teria dito o imperador ao filósofo: “Não sabes quem sou?” Ao ser ignorado, Alexandre emendou: “Sou Alexandre, o grande. Pede-me, agora, o que queres”. Diógenes respondeu: “Devolva o meu sol”. Por fim murmurou o imperador: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”.

Zenão[7], o estóico.

Outro filósofo que nos apresenta um modelo de superação às adversidades é Zenão de Cicio (334-264 a.C.). Deste filósofo registramos a seguinte lição de ignorância à adversidade que o levou a ter nome póstero na História da Filosofia: Narra-nos Diógenes Laércio quando foi a Zenão anunciado o naufrágio da nau na qual tudo que possuía fora tragado pelo mar, teria dito: “a fortuna quer que eu filosofe sem nenhum embaraço”. Depois do revés, Zenão, agora sem a posse de suas economias, fundou o Estoicismo (gr.: Stoa), corrente filosófica que tinha como fórmula “suporta e renuncia” (sustine et abstine).

As intempéries da vida não o atingia. Assim, dele se ouvia dizer: “Nem o gélido inverno, nem a chuva incessante, nem a chama do sol, nem a doença atroz consegue dominá-lo, nem os inúmeros folguedos populares; infatigavelmente ele se dedica noite e dia a seus estudos.”[8] Nem mesmo os poetas cômicos percebiam que suas sátiras tornavam-se um elogio, Filêmon dizia: “A filosofia desse homem é de fato original; ele ensina a ter fome e consegue discípulos. Apenas um pão, um figo como sobremesa, e água para beber.”[9]

Por fim, Diógenes Laércio registra que Antípatros de Sídon compôs para Zenão o seguinte epigrama: “Aqui jaz o célebre Zênon, caro a Cítion, que escalou agora o Ôlimpos […] sem se cansar dos trabalhos de Heraclés[10], porém descobriu o caminho que leva as estrelas – apenas a moderação”[11]

Sócrates, o mártir imortal da filosofia

O que seria da Filosofia sem Sócrates? Aliás, ele morreu por ela, como Cristo morreu por nós. Em janeiro de 399 a.C., quando contava com setenta anos vividos, adentrou ao tribunal para submeter-se a um julgamento que daria desfecho a sua vida. Pesava sobre ele a acusação de violar e profanar a religião do Estado e corromper jovens atenienses. Kierkegaard afirma que “a acusação contra Sócrates é um documento histórico”[12]

Condenado por uma apertada maioria de 280 votos contra 220, foi obrigado a tomar cicuta, o que levaria a morte. Entretanto, Diorgenes Laércio levanta a maioria de 80 votos adicionais.

Certamente, ao que se sabe Sócrates não era um filósofo que vivia em uma torre de marfim contemplando à vida e muito menos – para continuar na metáfora – era uma coruja na gaiola. A ágora de Atenas era o seu púlpito, sua tribuna. Constantemente, lá estava a dialogar, com todo tipo de indivíduo. Raph W. Emerson conta-nos que era um “homem de origem humilde, mas bastante honesto, tinha a história mais vulgar e era de uma simplicidade pessoal assaz notável para excitar a verve dos outros […] Era um indivíduo de sangue frio, juntando ao seu humor um temperamento perfeito e um conhecimento dos homens, que, qualquer que fosse o interlocutor, expunha o indivíduo a uma derrota certa, fosse qual fosse o debate e, nos debates, deleitava-se imoderadamente”. [13]

Outrossim, era paupérrimo. Sua indumentária era a mesma, inverno e verão; andava sempre descalço; alimentava-se de azeitonas e de pão e água, salvo quando era convidado para algum banquete pelos amigos. De vez em quando se empenhava no ofício de escultor, fabricava algumas estátuas que lhe rendiam algumas moedas. Sua fisionomia comportava traços que lhe fugiam à beleza: na verdade dispunha de um rosto rechonchudo e feio, mas, quando começava a dialogar, todos esqueciam sua aparência, magnetizados por sua sabedoria.

Este jeito de ser despertou opositores e conspiradores contra Sócrates. Ele era irrefutável e rápido nas réplicas. Por exemplo, quando ouviu dizer que alguém falava mal dele, comentou: “É natural, pois essa pessoa nunca aprendeu a falar bem.”[14] E ainda: “Quando Antístenes moveu o seu manto de forma a deixar visível um rasgão no mesmo, o filósofo disse: “Vejo tua vaidade através do manto”[15].

A acusação que se irrompeu contra Sócrates é assim documentada por Favorinos[16] em sua obra Metrôon: “Esta acusação e declaração é jurada por Mêletos, filho de Mêletos de Pitos, contra Sócrates, filho de Sofroniscos de Alopece: Sócrates é culpado de recusar-se a reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado, e de introduzir divindades novas, e é também culpado de corromper a juventude. Pena pedida: a morte”.

Lísias, o filósofo, atuou como advogado de defesa no julgamento, mas Sócrates, assim declarou[17]: “Um belo discurso. Lísias, mas não adequado ao meu caso”; mas Lísias assim retrucou: “Se se trata de um belo discurso, como pode faltar-lhe adequação ao teu caso?” Sócrates replicou: “Ora: belos mantos e calçados não me seriam também inadequados?”

Assim Sócrates, condenado, deixa de estar entre os atenienses, que pouco a pouco se arrependeram, vindo com isso, numa tentativa de reparação de tamanha injustiça, a construírem uma estátua de bronze, obra de Lísipos, e que fora erigida no recinto destinado às procissões. Aos setenta anos enfrenta a morte sem nenhuma temeridade. Um gole de cicuta não foi o suficiente para aniquilar o filósofo; por isso a imortalidade veste tão bem Sócrates, assim como é pertinente a indagação que fizemos a seu respeito logo de início.

Conclusão

Poderíamos citar aqui, ainda, nomes como o de Sêneca, Schopenhauer, Kierkegaard etc, mas por enquanto, fiquemos por aqui. Mas não sem antes de trazer os versos resilientes do poeta indiano Tagore para este desfecho:

            Vivi meus três caminhos na terra.

            Purgatório. Inferno. Céu.

            Tudo de acordo com os meus projetos,

            Minhas atitudes,

            Procurando não cair nos mesmos erros.

            Agora – vago e espero

            Entre tropeços e flagelos

            O ressurgir da verdade.

Que a mensagem e a vida de Diógenes, Zenão e Sócrates sejam um indício de esperança, em meio ao gélido frio da adversidade.

Bibiografia

EMERSON, Ralph Waldo. Homens representativos. Rio de Janeiro: Ediouro.

KIERKEGAARD, Sören. O Conceito de ironia – constantemente referido a Sócrates. Trad. Álvaro Luis M. Valls. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes, 1991

LAÊRTIOS, Diógenes. Vida e doutrina dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 2008

[1] Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 158

[2] Apud. LAÉRCIO, Diógenes. Op cit. loc.cit.

[3] LAÉRCIO, Diógenes. Ibidem, p. 163

[4] Idem, ibidem, p. 161

[5] Idem, p. 158

[6] Diógenes Laércio dá detalhes desse encontro e, ainda, conta-nos: “Em certa ocasião Alexandre, o Grande, ficou à sua frente e perguntou-lhe: “Não me temes?” Sua resposta foi: “Que és tu ? Um bem ou um mal?” Alexandre respondeu: “Um bem.” Então Diógenes concluiu: “E quem teme um bem?”

[7] Alguns autores grafam como Zênon

[8] LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 187

[9] Idem, ibidem, loc. cit.

[10] Hércules para os romanos

[11] Apud LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 188

[12] O Conceito de ironia – constantemente referido a Sócrates, p. 134

[13] Homens representativos, p. 44/45

[14] Apud LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 56

[15] Idem, ibidem, loc cit.

[16] Apud. LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 57

[17] LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 57/58

Sobre as Sombra da Noite: poética para tempos de tormenta e calmaria

Essa nova obra aborda em prosa poética temas do existencialismo, notadamente o cristão. A filosofia e a teologia servem de estro movente para a cadência do verso que aqui se expõe. Se algum leitor demonstrar interesse em conhecê-la, entre em contato via e-mail ou por aqui mesmo.

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Sobre as sombra da noite. p. 80. papel pólen 80g. fosco, com orelhas.

 

Walt  Whitman

Ó capitão! Meu capitão!  nossa temível viagem terminou,
O navio resistiu a todas as tormentas, o prêmio cobiçado foi ganho,
O porto está próximo, ouço já os sinos, toda a gente está exultante,
Enquanto segue com os olhos a firme quilha, o ameaçador e
temerário navio;
Mas, ó coração! coração! coração!
Ó as gotas sangrentas e vermelhas,
Onde, no tombadilho, jaz meu Capitão,
Caído, frio e morto.

Ó capitão! meu capitão! levanta-te e ouve os sinos;
Levanta-te – a bandeira agita-se –   por ti as gaitas trinam;
Por ti há flores e há fitas, por ti as praias tas –
estão tomadas pela  multidão.
Por ti elas clamam, a massa de gente, de rostos ansiosos;
Aqui capitão! Pai querido!
O braço por debaixo da tua cabeça!
Deve ser por um sonho que, no tombadilho,
Caíste, frio e morto.

Meu capitão não responde, seus lábios estão pálidos e imóveis,
Meu pai não sente meu braço, não tem pulso nem vontade,
O navio está ancorado em segurança, sua viagem está terminada,
Da temível viagem chegou o navio, como o alvo conquistado:
Exultai, ó praias, e tocai, ó sinos!
Mas eu, com sentimento de luto,

Percorro o tombadilho onde jaz meu Capitão,
Caído, frio e morto”

(Walt Whitman, do livro Folhas da Relva –  Cf. trad. CHAMPLIN, Norman)

O JULGAMENTO DE SÓCRATES

taçaa de cicuta

por Jr. Fernandes

A ACUSAÇÃO

            Aos setenta anos de idade Sócrates subiu os degraus de um tribunal. Como era de pasmar aquela cena! O motivo que o obrigava era o de como réu fazer sua própria defesa num processo acusatório movido por Meleto, Anito e Licon. Segundo Diógenes Laécio foi a seguinte a acusação apresentada em janeiro de 399 a. C. contra Sócrates:

“A seguinte acusação escreve e jura Meleto, filho de Meleto, Piteo, contra Sócrates, filho de Sofronisco, do demo da Alopécia. Sócrates é culpado de não reconhecer os deuses que o estado reconhece, e de introduzir novos cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude. Pena, a morte”.[1] Kierkegaard afirma que “a acusação contra Sócrates é um documento histórico”[2].

Presume-se que a causa disso teria sido a curiosidade de Querefonte, quando um dia, em Delfos, ousou fazer esta pergunta ao oráculo: há alguém mais sábio do que Sócrates? A resposta foi a de que não existia ninguém[3]. No entanto a leitura de Platão remete-nos a uma causa política.

O RÉU E A DEFESA

Na República, por exemplo, encontramos um Sócrates extremamente avesso aos governos democráticos. Mesmo assim, Platão é fiel à leitura dos autos e registra dessa forma a acusação de Meleto: “Sócrates é réu de corrupção da juventude, de não reconhecer os deuses reconhecidos pela cidade e também de praticar cultos religiosos novos e diversos”[4].

Mesmo com brilhante defesa que fez de si mesmo, não conseguiu evitar o desejo permeado pelo ódio de seus compatriotas acusadores. Sócrates fora condenado à pena capital, conforme aspirava seus caluniadores. Na Apologia, Platão registra como Sócrates foi receptivo à pena, devolvendo de forma justa – como um justo juiz –  seu parecer em relação aos seus acusadores: “[…] fugir à morte não é difícil, bem mais dificultoso é fugir à maldade, mais célere que a morte é a malvadez. Ora, eu, que sou tardo e velho […] vou pagar meu débito de morte e estes irão pagar seu débito de iniqüidade e de infâmia, condenados pela verdade.”[5] – tal foi a sentença socrática contra seus acusadores.

As acusações atribuídas ao filósofo das ruas foram suficientes para justificadamente eliminar sua vida? Ou na verdade cometera-se uma injustiça histórica, tal qual se fizera a Jesus Cristo? Certamente, ao que se sabe Sócrates não era um filósofo que vivia em uma torre de marfim contemplando à vida e muito menos – para continuar na metáfora – não era uma coruja na gaiola. A àgora de Atenas era o seu púlpito, sua tribuna. Constantemente, lá estava a dialogar, com todo tipo de indivíduo. Raph W. Emerson conta-nos que era um “homem de origem humilde, mas bastante honesto, tinha a história mais vulgar e era de uma simplicidade pessoal assaz notável para excitar a verve dos outros […] Era um indivíduo de sangue frio, juntando ao seu humor um temperamento perfeito e um conhecimento dos homens, que, qualquer que fosse o interlocutor, expunha o indivíduo a uma derrota certa, fosse qual fosse o debate e, nos debates, deleitava-se imoderadamente”[6]. Além disso, era paupérrimo. Sua indumentária era a mesma, inverno e verão; andava sempre descalço; alimentava-se de azeitonas e de pão e água, salvo quando era convidado para algum banquete pelos amigos. De vez em quando se empenhava no ofício de escultor, fabricava algumas estátuas que lhe rendiam algumas moedas. Sua fisionomia comportava traços que lhe fugiam à beleza: na verdade dispunha de um rosto rechonchudo e feio, mas, quando começava a dialogar, todos esqueciam sua aparência, magnetizados por sua sabedoria.

O SENSO DE DEVER DIANTE DA SENTENÇA

 Sócrates era irrefutável. Era um feiticeiro da palavra. Todos se encantavam com a arte de sua maiêutica. Seus antagonistas encurralavam-se diante de sua argumentação. Os sofistas provaram da arte do discurso socrático e estes sentiram sua ironia e lógica irreplicáveis. Talvez tenha sido justamente esse jeito de ser que causou a perturbação do Estado, a ponto de gerar um ciúme terrível, capaz de  condenar injustamente um homem de bem [spoudaios]. Sócrates representava a Filosofia que perturbava a ordem vigente, por isso pagou com sua própria vida.

Abro um parêntese aqui e peço ao amigo leitor uma devida licença poética para reconstituir o cumprimento da pena que os juízes infligiram ao nosso réu. Pois bem. Emerson diz que “Sócrates entrou na prisão, e tirou toda a ignomínia a esse lugar, que não podia ser uma prisão enquanto ali ele estivesse”[7]. Críton, um dos seus discípulos, suborna o carcereiro e propõe uma fuga, no entanto Sócrates rechaça o plano do discípulo: “tua solicitude teria sido muito louvável, meu querido Críton, se fosse conforme aos ditames da justiça […]”[8]. Que ética! Que senso de dever! Frustrada a tentativa de Críton, restou ao discípulo consolar-se com a iminente despedida do seu mestre.

No Fédon (ou da imortalidade da alma), Platão – embora não estivesse presente[9] – conta-nos como foi as últimas horas do condenado. Naquela masmorra, Sócrates jaz em correntes à espera da execução penal. Chegada a hora, Sócrates recebe a visita de sua esposa Xantipa, mas esta pôs-se a lamentar; em vista disso Sócrates pede a Críton que a levem para casa, assim foi feito.

UM GOLE PARA A IMORTALIDADE

Em seguida, isto é, depois de alguns diálogos com os seus epígonos, recebe a taça envenenada “com a maior tranquilidade, sem nenhuma emoção, sem alterar sua expressão, sem mudar de cor”[10]; depois disso,  “levou a taça aos lábios e esgotou-a, sem o menor gesto  de dificuldade e repugnância”[11]. Ao cumprir o ritual, a serenidade de Sócrates contrastava com aflição de seus discípulos. No entanto, pede a todos coragem e tranquilidade: “Animai-vos – disse ele aos seus amigos que se mostravam tristes – e dizei que estão enterrando apenas meu corpo”[12]. Aos poucos os sintomas do efeito da cicuta foi tomando de conta da vida do réu injustiçado. Sócrates caminhava de um lado para o outro, até um certo tempo, mas logo se recolheu, quando começou a sentir que seus pés e pernas já não lhe respondia. Todo o seu corpo foi ficando dormente, rijo e frio. A morte se aproxima. Descobrindo o rosto, que havia coberto, dirigiu suas últimas palavras a Críton:  “Devemos um galo a Asclépios, paga esta minha dívida, não te esqueças”[13]. Com esta frase aparentemente simplória, Sócrates deixa-nos uma última lição, qual seja, que a honestidade deve ser perseguida até o último suspiro de nossa vida. Memoráveis e dignas de registro são as palavras de Críton, que Platão sabiamente utiliza como desfecho do Fédon: “Do homem [Sócrates] podemos dizer que foi o melhor de todos que conhecemos em nossa época, o mais sábio e ainda o mais justo”.[14]

Com muita propriedade, afirmou Ralph W. Emerson: “a celebridade dessa prisão, a fama dos discursos que foram proferidos, e a taça de cicuta, são uma das mais preciosas passagens da história do mundo”[15].

“Será, então, que o Estado ateniense, com a condenação de Sócrates, cometeu uma injustiça que grita aos céus, será que o mais certo que podemos fazer é voluntariamente nos unirmos à multidão de sábias carpideiras e de filantropos pobres de espíritos e ricos em lágrimas, cujos choros e lamentações por um homem tão bom, tão honesto, modelo de virtude e cosmopolita, vítima da inveja mais sórdida, cujos choros e lamentações, como disse, repercutem ainda através dos séculos?” – indaga-nos Kierkegaard[16]. Decerto, o Estado democrático ateniense, representado pelos acusadores Meleto, Anito e Licon, decidiu o destino de Sócrates; assim, como corruptor de jovens e profanador dos costumes religiosos, “seria melhor – disse Anito e Meleto – que Sócrates morresse”[17]. Enfim o mataram. Ou melhor, o transformaram num mártir – o primeiro da Filosofia.

O DESFECHO: A Hora da partida

Diante da sentença prolatada pelos juízes que, no entanto, desejavam absolvê-lo, “recusou-se a pedir clemência à multidão que ele sempre desprezava. Ela detinha poderes para perdoá-lo; ele desdenhou de fazer o apelo”[18]. Não por acaso, Platão e Aristóteles demonstram uma ojeriza à Democracia. A multidão costuma cometer irremediáveis erros: Condenai a Sócrates! Soltai a Barrabás e crucificai o Nazareno! – eis as vozes inebriadas pelo simples desejo de manifestar a vontade de poder.

Cumprir a sentença de morte, aí está o destino do bom homem Sócrates, que o aceita como um verdadeiro estoico aceitaria.  Aos 70 anos de idade, cansado e sem nenhum rancor no coração, resignadamente agasalha sua sorte: “já está muito claro pra mim, que morrer agora e livrar-me de todas as fadigas era a melhor coisa […], e de minha parte não levo nenhum rancor contra aqueles que me condenaram e os meus acusadores”.[19] Esta postura serena e paradoxal frente à iminência da morte é, ainda, uma lição de como o homem de bem a nada deve temer, assim admoesta aos juízes que “nenhum mal pode atingir o homem reto nem em vida e nem depois de morto e tudo que lhe acontece é oriundo da benevolência dos deuses”[20]. É assim que Sócrates caminha para o destino final de sua vida.

Depois da conversa com os magistrados, ainda no fórum, Sócrates profere algumas palavras que se tornaram imortais, tal como toda sua vida; sirvo-me delas para arrematar e evidenciar ainda mais o réu que foi, injustamente, condenado à morte:

“É chegada a hora de partir: eu para morte e vós para vida. Quem de nós se encaminha para o melhor destino, todos nós ignoramos, exceto o deus”[21]

BIBLIOGRAFIA

EMERSON, Ralph Waldo. Homens representativos. Rio de Janeiro: Ediouro.

KIERKEGAARD, Sören. O Conceito de ironia – constantemente referido a Sócrates. Trad. Álvaro Luis M. Valls. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes, 1991

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Rio de Janeiro: Ed. Nova Cultural, 1996 – Col. Os Pensadores.

_______. Críton ou do dever. Rio de Janeiro: Ed. Nova Cultural, 1996 – Col. Os Pensadores.

_______. Fédon ou da alma. Rio de Janeiro: Ed. Nova Cultural, 1996 – Col. Os Pensadores.

[1] In: PLATÃO. Introdução à apologia de Sócrates, p. 57

[2] O Conceito de ironia – constantemente referido a Sócrates, p. 134

[3] Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. p. 69

[4] Idem. Op. cit., p. 73

[5]  Idem, p. 94

[6]  Homens representativos, p. 44/45

[7]  Op. cit., p. 46

[8]  PLATÃO. Críton ou do dever, p. 104

[9]  Diz Fédon: “Platão não estava, parece-me que estava doente”: Idem, Op. Cit., p. 119

[10] PLATÃO. Op. Cit, p. 189

[11] Idem, Ibidem, p. 190

[12] DURANT, Will. A História da filosofia, p. 36

[13] PLATÃO. Fédon ou do dever, p.191

[14] Idem, p 191

[15] Op. Cit, p.46

[16] Op. Cit., p. 134

[17] DURANT, Will. Op. Cit., p. 36

[18] Idem, p 36

[19] Cf. PLATÃO. Op. Cit., p. 97

[20] Idem, Loc cit.

[21] Cf. Idem, Loc cit.

Sentimos  que  nada  somos,  pois  tudo  és  Tu  e  em  Ti,
Sentimos  que algo somos,  isso  também  vem  de  Ti;
Sabemos que nada  somos  — mas  Tu nos ajudas a  ser algo.
Bendito seja  o  Teu  nome.

(Alfred,  Lord  Tennyson)